quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Prelúdio

Comecei um projeto, quando em viagem. Chama-se "cartas lânguidas", até segundo aviso. É sobre a companhia. Sobre o olhar. Sobre o afeto.
Especificamente para (e) com uma determinada companhia na minha vida que hoje já se afastara. Toda intimidade está fadada a ser expurgada, quando falamos de mim.
Esta havia sido a primeira vez que me propusera a escrever-lhe. Nunca entregara. Fizera um pôster que acabou se tornando assustador demais, associado ao texto. Pintei de preto o texto, e pendurei o desenho na minha parede.
Toco o projeto lentamente.

-

Foi medo o que eu senti quando os meus olhos me disseram o mundo. Foi quando eu os abri, e então, pude perceber a corda sobre a qual me equilibrava. Completamente emaranhada. Não parecia que levaria a lugar algum. Caminho é para frente, certo? Pois bem. Para lá não ia. Era arriscado olhar ao redor. Abrir os braços para onde? Piscar?
Abri os olhos, mas fechei-me. Num pânico desmedido. Acometido pelo pavor de descobrir o que podia ver. Como no mito da caverna.
Aquela que me vinha dizer do belo e rico mundo que era fora, em empatia e irmandade, me enraivecia. Teus gestos e palavras mornas, de quem havia sentido o brando brado do sol, além do horizonte, eram, para mim, as coisas mais nojentas do universo.
Afastava-a enquanto ela tentava me puxar, quente, para que sentisse eu mesma, também. Juntas. Quanto mais ela tentava, mais eu queria afastá-la. Empurrá-la, reclusar-me naquela úmida, pastosa escuridão solitária. Quando cansou, parou. Soltou-me a mão, em curta decepção. Fora para fora e cada segundo que passava ouvindo-a rindo-se e amando-se com os outros, sob o calor do sol, era uma gota de água na têmpora, rotineira e seguramente torturante, agoniante.
Não fosse a corda onde me encontrava, teria me fechado em mim mesma até que os ossos se desfigurassem.
Nós estamos, e não estamos, verdadeiramente, sozinhos. Enquanto sentia o ódio percebia que mais ele me odiava do que eu as odiava, se rindo e se amando. Não eram elas as responsáveis pelo meu sofrimento. O ódio era responsável, o meu ódio. Que eu produzia, disparava e consumia. Que me consumia. Eu não tenho palavras que sejam justas com o sentimento que é estar neste lugar.
Cega de mim mesma, asquerosa, invejosa, purulenta, vil.
Criatura tão pobrezinha, tão desprezível e, ainda sim, ali, incapaz de acabar-se, findar-se em si mesma. Se eu pudesse, àquele momento, ou agora, eu me causaria uma implosão. Um engolimento, do buraco-negro por ele próprio. Entre a autodepreciação e a autocomiseração não cabe muito mais coisa além da aspereza.
Áspera, podre, eu me lembrei de olhar-me novamente; aquela imagem transfigurada nunca será esquecida. Tomei coragem, olhei para o emaranhado que era minha corda, meu caminho. O emaranhado que era empecilho, na verdade, nós. Nós, por onde era preciso passar. Encontrar e dar as mãos em laços. Deixar-me por eles me prender, apoiar, segurar, firmar. Pois estava bamba a corda que não me deixava olhar ao redor, muito menos abrir braços, e meus ossos começavam a se engruvinhar, acostumando-se à posição repelível na qual me arrumava, asquerosa e áspera.

Foi quando eu me movi e permiti-me olhar onde e em que condições me encontrava que, num surto provocado pelo erguer-se, respirar, mover, aquentar-se, que abri os braços e senti o frio do peito.
E tu, ali.
Perto dos teus nós, mas eu podia reconhecer aquele olhar. O mesmo que eu tinha. Quando nos aproximamos, foi possível sentir aquele fogo que escrevi das mãos de Galeano e você carrega contigo, você sabe de qual estou falando, não é?!
Foi entre reconhecimento e admiração que a gente foi se enrolando juntas, se enlaçando, atrapalhadas, como o bebê que quer correr antes de engatinhar, talvez. Ao mesmo tempo que me via em tu, repelia a possibilidade de, por consequência, ver-te desprezível como a mim. Não era possível admirar o que fosse como eu. E eu a admirava. Dialética e contraditoriamente, você era o que eu não era e por isso eu a queria perto, como era o que eu também era, e por isso eu poderia me sentir bem em tê-la junto, parte. Aí é que está: se eu me desprezo e preciso dum mínimo de identidade e reconhecimento para poder emaranhar minha corda com a sua, então o que você é e pode ser, para mim, comigo? Foram tantas as vezes que, orientada pela vontade de querer-te bem, quis afastar-me. E tantas mais que, egoisticamente eu via que precisava de você ao meu lado para me sentir bem. Sentir-me bem, e ponto. Ao mesmo tempo que sabia que eu tinha parte no teu bem-estar, que as minhas decisões e escolhas poderiam ser boas ou destrutivas para tu, que me fazia bem. Que me faz.
Então a tua companhia me faz bem. Mas a minha companhia para você não te faz bem, e então, consequentemente, não me faz bem. Pois sei que só faço bem para fora para sentir aquele calorzinho dentro. Se não fosse assim, teria, como mártir para mim mesma e, ao mesmo tempo, de todo o universo de todo o tempo, afastado-me quando percebi o que fazia para ti. E então eu sentiria-me bem comigo mesma, parando de fazer-me mal ao me ver fazer-te mal.
Chamarei de hedonista o que todos nós, aqui, queremos chamar de egoísta, narcísica, autocentrada. Eu não sei se quero te ter perto por nós, ou por mim, para sofrer ao fazer mal, em um martírio, autotortura; ou se te quero perto para buscar fazer e sentir bem, afastando do ciclo de comiseração, desenvenenando-me. Ou se só quero perto porque, como já vimos, em algum momento, que nós são necessários para trajetórias. Um copo, além de ser a quantidade de trabalho humano (abstrato?) socialmente necessário para produzir uma mercadoria, também não o é. É também e somente, aqui-e-agora, o recipiente que me permite matar minha sede.
Eu não sei ser amiga. E tenho vontade covarde de parar tudo, sair correndo, te fazer parar de ter qualquer abertura para que eu te faça mal. É fácil delegar a minha responsabilidade de mim e do meu bem-estar para você, mas me é difícil aceitar a responsabilidade da tua. E eu resisto tanto! Criança mimada que só quer estar no centro do mundo dos outros, ausente e omissa quando tem a oportunidade de escolher (e) dividir o bombom.
Pior do que ignorante, eu sei que faço mal. Só não consigo evitar. E daqui, eu não sei mais para onde ir. Amizade é um círculo vicioso de fazer mal e (tentar) recuperar/compensar? Quem consegue não fazer mal, consegue, também, se preservar? É possível não fazer mal nem ao outro, nem a ti?
Talvez esteja tão difícil não errar porque eu não consigo olhar para você. Como se, ao assim fazer, eu me perdesse. E eu morro de medo de me perder de novo. Mas também tenho medo de te perder. E também de te ter perto. E de ter te tido e não conseguido manter-te.
Talvez esteja tão difícil não errar porque eu não sei olhar. Nem para você, nem para mim.

Eu gosto tanto de você... Acho que eu não sei gostar.

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