segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Consciência

Eu achei que ia morrer. Deitei o corpo com as costas eretas, pressionei os dedos das mãos uns contra os outros, fechei os olhos e comecei a ter meus últimos pensamentos. Patético. Pensei desde a rosquinha que deixei aberta amolecendo na mesa da cozinha até a minha primeira memória constrangedora da infância. Quando corri contra uma porta de vidro recém-instalada na saída do banco, caí e pude ver minha família rindo desesperada e discretamente. Eu achava que seria mais poético. Não me entenda mal, não é como se eu esperasse trombetas angelicais e a marcha dos bons vindo me carregar, mas com certeza não esperava aquele mais do mesmo. Quero dizer, era igual a quando eu ia dormir, só que com muito mais expectativa e muito menos realização. Afinal, sem querer quebrar com o suspense, mas todos nós sabemos que não morri, dado que aqui estou a contar-lhes frustrante experiência.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Outro Romance

João pediu Maria em namoro. Eles estavam na mesa do restaurante, ambos absortos não no arroz-com-feijão e espaguete, mas na profundidade agora perceptivelmente imensurável da maçã dos olhos um do outro. Esqueceram-se tanto do alimento que levam do prato à boca (a fome é de garfo e faca, não somente de comida) quanto do fato de que a admiração e as borboletas que sentem na barriga não são fruto de todo o outro que ali, à sua frente, embasbacante e também embasbacado, está. O outro é tão-somente o que se vê a partir de si. A partir dos teus olhos que apreendem em câmara invertida e do teu cérebro que processa e manda os choques elétricos para o estômago, que insiste em remexer-se a cada engolida barulhenta da glote.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

de Santo Agostinho.

A esperança tem duas lindas filhas
Raiva e Coragem.

Raiva do estado das coisas
e Coragem para mudá-las.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Demônios

Quando pequeno, eu tinha medo de monstros. Hesitava quando no escuro, amedrontado pela prospecção do encontro com aquela não-figura que tomava todo o para-além de mim, ali, nos escuros, nos desconhecidos, nos não-espaços. Era aquela besta descontrolada que a qualquer momento, imprevisível, poderia vir a encontrar-se comigo, e isso eriçava cada fino pêlo quase translúcido do meu jovem corpo.