quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Demônios

Quando pequeno, eu tinha medo de monstros. Hesitava quando no escuro, amedrontado pela prospecção do encontro com aquela não-figura que tomava todo o para-além de mim, ali, nos escuros, nos desconhecidos, nos não-espaços. Era aquela besta descontrolada que a qualquer momento, imprevisível, poderia vir a encontrar-se comigo, e isso eriçava cada fino pêlo quase translúcido do meu jovem corpo.
Como toda criança, pedia à mamãe que me protegesse, que me cobrisse com seu endeusado manto o meu pequenino e supostamente frágil corpinho, a minha até então existência consciente – que não extrapolava a minha matéria ordenada (e receio que, talvez por medo, ainda hoje também não). Era este manto, tão criativamente concreto, que evitava que os monstros me alcançassem.
Envelheci e então percebi a também fragilidade do manto. Comecei a perceber os buracos e remendos, o tecido gasto. Acho que extrapolei a extensão protetora dele, ao passo que percebia meu corpo começando, vagarosa e sorrateiramente, a avançar por aquele não-espaço que antes, desconhecido, era densamente preenchido pelo machucho, assustador monstro. O que era antes coexistência, eu e ele, distintos um ao outro, pude observar transformar-se. Enquanto eu me expandia para além de mim, a besta não se condensava. Não se reduzia para dar espaço ao eu que extrapolava ao manto e a mim mesmo. Passamos a dividir (disputar) nossa existência. Nos confundimos, eu a monstruosidade. Ali permanecíamos, separados apenas pelas identidades, barreiras transeuntes entre o eu e os outros.
Parece costumeiro do nosso tipo que queiramos capturar e cativar as coisas que nos assustam. Pensamos que ao botar em rédeas, nossas rédeas, nos manteremos seguros e protegidos das bestas. Então, de projeções estrangeiras a nós, ocupadoras de todo o resto para-além de nós, as tomamos para nós, para dentro de nós... Tornei-me gaiola para conter o que antes era força externa, acreditei que poderia, assim, conter e controlar, talvez até domesticar. Achei-me comprimindo a besta para caber em meu não-tão-pequeno tamanhinho, dei forma de mim mesma sob a suposição de que, assim, pudesse domá-la, dominá-la. Engano meu, percebi. Ao tentar comprimi-la para caber em espaço por mim controlado – eu mesma – percebi-me preenchendo-me daquilo de que tanto quis me acautelar. E desta vez não poderia haver manto que me resguardasse, pois o manto já há muito tempo maculou-se. De tão controlada que era tal gaiola, dominando-me foram os escabrosos que acompanhavam o monstro agora enformado. Em mim enfornado. O calor do meu corpo, o alimento e toda a organicidade serviu-lhe de alvéolo, permitindo se desenvolver como nunca poderia, quando naquele inóspito e etéreo não-lugar. Comeu afetos, bebeu confortos, fartou-se de vinhos e êxtases.
Hoje, casulo. Cativeiro para crisálida bestial, guardo em mim somente o que cabe e, a cada dia, vejo-me consumida pelo verme que cativei. Aguardo o dia em que, em magnífico arrojo, a besta que quis domar irrompa com a minha também frágil, mais frágil que manto parental, contenção. Libertar-se-á, então, da instalação magistral, ecoando por entre as não-paredes de seu primeiro e verdadeiro lar, dominando tudo o mais que não fiz pertencer a mim. Restarei fibras e fitas amorfamente amontoadas. Aglomeração residual do que algum dia foi criança amedrontada.

2 comentários:

Thaís disse...

Esses dias citei Hanya. Acho que estamos em época de olhar embaixo da cama antes de dormir.

FlapLop disse...

"Suspeito que ao passo em que este cresce, logo não darei mais conta de pedir que vá embora e por fim se instalará por estadias maiores. É uma relação perigosa mas insisto que este possa me servir de oráculo, restando saber, na soma de nossas fomes, quem por fim devorará quem. Olho-o nos olhos e encaro, afinal - este monstro sou eu."

Temer se libertar do monstro que já não cabe em nós? Acho que a gente se engana que doma medo. Medo que é domado não é medo. É sombra de medo. Aquela que não age nem reage, apenas segue. Essa é facinho de dominar. Está ali, já presa aos nossos pés. Só é preciso mudar a luz um pouco pra lá, e o ponto de vista um pouco pra cá.

Talvez difícil mesmo seja se dominar.