quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Outro Romance

João pediu Maria em namoro. Eles estavam na mesa do restaurante, ambos absortos não no arroz-com-feijão e espaguete, mas na profundidade agora perceptivelmente imensurável da maçã dos olhos um do outro. Esqueceram-se tanto do alimento que levam do prato à boca (a fome é de garfo e faca, não somente de comida) quanto do fato de que a admiração e as borboletas que sentem na barriga não são fruto de todo o outro que ali, à sua frente, embasbacante e também embasbacado, está. O outro é tão-somente o que se vê a partir de si. A partir dos teus olhos que apreendem em câmara invertida e do teu cérebro que processa e manda os choques elétricos para o estômago, que insiste em remexer-se a cada engolida barulhenta da glote.

Perceba, os olhos são reflexivos. Eles refletem a luz, o ponto de foco ao qual desejamos direcioná-lo, e quem os olha. O que desejamos olhar reflete o nosso ponto de vista e, dos pontos de vista de Maria e João encontram-se, exatamente, João e Maria. A comida, mesmo que com garfo e faca, já não os alimenta e os dois acabam por deixá-la de lado. Dando a desejada atenção (sua própria) ao objeto que desperta sua fome e sensação de saciedade que, na verdade, é fruto do cérebro chocante que dá os nós no estômago enquanto se entreolham e não mais comem de garfo e faca, mas de desejo e romance.

Então, decidido como um trovão no qual culmina toda uma tempestade imprevisível, João solta com um grito gutural (do estômago, que de comida está vazio): “Namora comigo!”. Maria leva outro choque. Atingida pelo trovão imprevisível, seus nervos e sinapses em êxtase causam indizíveis sensações, marcando todo o corpo processado pela mente e novamente transformando em reação – êxtase – , Maria, num pulo decidido para fora da mesa, como quem já não precisa mais nem de mesa, nem de garfo e faca, nem comida, diz um controlado “Sim!”. Não vou dizer da reação de João. Mas lembremos: os olhos são reflexivos de muitas coisas, inclusive dos que os olham.

Maria e João, então, passam sua vida se entreolhando, eriçando, torcendo seus estômagos e alimentando aos desejos um do outro, em puro romance.
Ah! Os delírios dos apaixonados.
O corpo é fruto da mente. O namorado de Maria existe pois João a pediu em namoro. O amor de João existe pois os olhos de Maria profunda e imensuravelmente refletiam e embasbacavam João, quando na mesa do restaurante, com o braço erguido-parado com arroz-com-feijão e espaguete.
A realidade é fruto da compreensão dela. Na compreensão de João e Maria, fome nem de comida, nem de garfo e faca mais havia. A fome era de Maria e João, que se criava e saciava e recriava na imensidão que refletia em loop dos olhos de um embasbacado no outro.
Lá pela terceira semana Maria sentia algo diferente dos choques e borboletas. João tentou abraçá-la com força para acalentá-la, mas o abraço foi fraco demais para tal. Nunca saberiam: o abraço havia sido fraco demais, ou a fome do abraço era mais forte do que jamais poderia ser o abraço acalentador de João? João viu seu reflexo um pouco mais opaco nas maçãs dos olhos de Maria, e também não sabia se assim ficara porque seus olhos não puderam enxergar mais tal brilho ou se ele começava a se extinguir. Ou pior, se os dois. Maria começou a perceber a irritante pinta em seu rosto, teimando em se refletir na maçã do olho de João, ali do lado direito. Quis que João parasse de refleti-la. Pediu, e João, não se enganem, muito tentou. Mas João não podia deixar de vê-la. A pintinha traiçoeira de Maria o encantava. João olhava-a intensamente, tentando entender o porquê de Maria não querê-la. Obcecou-se pela pinta, tentando, profundamente, eliminá-la. A pinta aumentava e aumentava, no reflexo dos olhos de João. Maria a odiava e começava a odiar João. Por ao passo do tempo aumentá-la e aumentá-la e tornar Maria nos seus olhos cada vez mais pinta, tentando aniquilá-la. Aniquilar pinta de Maria.
Mas só o que conseguia era ocupar Maria de pinta. Cada vez mais pinta, Maria. Quanto mais pinta, menos Maria.
Maria passou a olhar menos para João. Não queria ver mais a pinta que obcecava João. Via-se menos pinta e mais braço. Outro braço. Perna, barriga, torso. Sem pinta do lado direito. Quer dizer, uma ou outra, podia ver e tocar. Mas incomparável à pinta qual odiava ver através dos olhos de João. João conseguia ver menos do reflexo muito opaco dos olhos de Maria. Além de que, agora, olhando para seus próprios braços e pernas e pintas tocáveis e pouco irritantes, Maria só permitia que João visse, também, um pouco de seu braço, sua perna, barriga, torso.

O corpo é fruto da mente? João era mutante semi-morto composto de pedaços de passado-João e Maria era quase só pinta traiçoeira do lado direito. Mutante e pinta, fracos, com fome, frustrados, João e Maria lembravam vagamente o choque que um era para o outro, e mal conseguiam sentir satisfação nas torções do estômago. Não era mais nos olhos a imensidão, mas no estômago. Maria permaneceu tentando saciar-se de João, assim como João tentava olhar Maria por detrás da pinta, ambos insistentemente sem sucesso. A realidade é fruto da compreensão dela, e Maria e João não compreendiam nem mais fome, nem saciedade, nem João e Maria. Talvez um dia Maria volte a olhar e entender a si mesma como havia começado, para além dos olhos de João. E olhe estômago e garfo e faca e mesa e arroz-com-feijão e espaguete. E se alimente não mais de João. E João consiga ver-se para além do mutante opaco semi-morto e, se alimentando de outras coisas que não a pinta de Maria, possa voltar a brilhar e, quem sabe, então, João possa ver Maria de verdade e Maria possa ver João através da mesa do restaurante, depois de garfo, faca, mesa e comida.