segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Consciência

Eu achei que ia morrer. Deitei o corpo com as costas eretas, pressionei os dedos das mãos uns contra os outros, fechei os olhos e comecei a ter meus últimos pensamentos. Patético. Pensei desde a rosquinha que deixei aberta amolecendo na mesa da cozinha até a minha primeira memória constrangedora da infância. Quando corri contra uma porta de vidro recém-instalada na saída do banco, caí e pude ver minha família rindo desesperada e discretamente. Eu achava que seria mais poético. Não me entenda mal, não é como se eu esperasse trombetas angelicais e a marcha dos bons vindo me carregar, mas com certeza não esperava aquele mais do mesmo. Quero dizer, era igual a quando eu ia dormir, só que com muito mais expectativa e muito menos realização. Afinal, sem querer quebrar com o suspense, mas todos nós sabemos que não morri, dado que aqui estou a contar-lhes frustrante experiência.

Bom, acontece que, achando que iria morrer, percebi as muitas coisas que quis fazer e não fiz. Todos os amores que achei que teria e não tive. Todas as bolachas que quis comer e não comi. Toda a fome que quis saciar e não consegui. E lá estava. Tentando achar rima e virada sarcástica, mas só pensava na maldita bolacha amolecendo ou na descarga que provavelmente não apertei direito. Lá estava a merda, cretina, esperando que alguém a encontrasse. Ninguém me encontrou. Acho que se eu tivesse morrido mesmo, tanto eu quanto merda estaríamos fedendo, a este ponto, esperando. Esperando, não consegui pensar na minha namorada e nas últimas palavras que gostaria que carregasse consigo. Não pude pensar em fardo maior para carregar, que não eu mesmo, vivinho, sem memórias póstumas. Na verdade, resolvi que queria terminar nosso também patético namoro, já que não morri. Se não queria deixar-lhe nada de recordação, também não quero deixá-la a espera, tanto da minha morte quanto da minha memória post mortem. Acontece que até o presente momento também não tive coragem de terminar com ela. Eu devia ter morrido.

Preferia ter morrido. Deitado com os dedos entrelaçados, esperando, afundando. Nem o sono nem a morte. O tédio. O asco. Rancor de toda a mesquinhez, covardia, conivência. Os olhos paranoicos. O canto escuro do teto no canto do meu olho. A merda esperando. Um calafrio e uma leve esperança. Calafrio é véspera, mas meia-noite, uma, duas horas da manhã, as extremidades frias e nada. Nada. Aceitei que já não ia mais morrer. Sentei-me na cama e esfreguei as mãos para esquentar. Estava fadado a namorar quem não queria, comer sem sentir fome, beber o que não matava minha sede, levantar-me de camas nas quais não dormi noites inteiras e a olhar com antipatia as crianças sorridentes em volta da fonte.

Eu não morri. Sinto um cheiro pútrido impregnado, como lembrete. Não estou exatamente vivo. Sigo esperando.

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