sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Cartas Lânguidas I

I. Encaro uma flor desenhada azul dentro de um ojo de díos. A água escorre do fim da chuva. A louça na pia se acumula. Sobre o fogão, um doce amargo supostamente sabor prestígio repousa, intacto. Outrora, teria sido devorado. Hoje, o que devora é azia. E apatia.

Ela padece em frente à janela, imóvel a não ser por seus pensamentos. Pelo menos eu acho. Pode ser que apenas casulo vazio, tendo deixado seu ser perambular por outros lugares mais hóspitos.
Sentei-me e debrucei-me sobre contos. Contei três. Cansei.
O que acontece é a síntese de uma longa conta se resolvendo sobre nós. Entre matemática, história e física quântica. Um resultado infindo de inúmeras circunstâncias e unidades e variáveis verdadeiramente incalculáveis. Estamos uma superfície assaz profunda, de maneira que sobre nós se dispõem ambos contos e contas.
Ensaio dizer-lhe quaisquer palavras, mas um bolo irritadiço e cansado entalado, mais a dor que se divide entre o pé e o orgulho (ou seria auto-amor?) calam-me. Ela sai.
Nas profundezas de meu assento no sofá uma silenciosa guerra: a incerteza é rainha déspota que governa sobre todos os súditos, que assim só o são por falta de opção. Como todo bom governo, o da incerteza serve muito bem a uns e outros, enquanto que consome a miséria qual impôs a vários outros.
É um governo novo, de modo que os seres a que submete ambiguamente sucumbem ao seu paládio, naturalmente, desconfiando-se e acomodando-se nela, ou seja, na incerteza. Nos templos sagrados, um palanfrório entre sábios, profetas e charlatães ecoa sobre os ares e os ouvidos dos cidadãos das profundezas. Na batalha sofista contra a verdade, são imersos os que não conhecem outra coisa senão eles mesmos. A verdade se mantém incólume, distante, talvez adormecida. Assim, apartada desse lugar, mantém-se segura de agonias como sua distorção ou aparo, mas o estado comatoso ao qual aparenta estar serve aos que, falaciosos, dizem detê-la. Nesta guerra fria que é o governo em mim, assisto, de longe privilegiada, mais inerte e passiva. Mais do que me apraz.
Levanto-me de súbito e me ponho às tarefas da casa. Ela também é viva e há de ser cuidada. Dado que já não soube cuidar de laços, atenho-me ao trabalho com mais zelo do que o costumeiro. Atentamos que eu, assim como tantos outros nos infernos, não busco ser causa de males. Acontece que eles acontecem. Eu aconteço.
Enquanto preparo o almoço para três, observo o pé de limão nos fundos da cozinha. Lembro-me de ter ouvido no rádio da oficina do outro lado da rua que, ao contrário do que se pensava elas, as árvores, ficam mais fortes e mais sedentas ao passo do tempo. Seu envelhecimento lhes dá não o cansaço ou fraqueza, mas força física e, quem sabe, energética, pela vida. Conforme vão adentrando, ocupando, ou mundo, elas vão dele tomando mais e mais posse. Pertencem e tomam pertencente o presente no qual habitam, alimentadas de história, certificando futuro. É isso tudo o que observo naquela janela, durante o preparo mecânico do arroz-com-lentilha-cenoura-vagem-salada-e-batata-muita-batata.
Batata é vida. Frita, assada, cozida. É aquele tipo de alimento para a alma. E aquilo que penso alma em mim é fraco e, aparentemente, fica, ao contrário das árvores, cada dia mais cansado e fraco.
Asso batatas para alimentar a alma.
Ela já saiu faz tempo, e ocupo minha mente para não elaborar planos de reconquista de seu bem estar e querer. Já é tarde e aquela terrível musica de Jorge Ben soa na minha cabeça; "a minha teimosia é uma arma pra te conquistar. Eu vou vencer pelo cansaço até você gostar de mim, mulher...". Rio-me e, chacoalhando-a para fora, vem-me outra, "ela já não gosta mais de mim. Mas eu gosto dela mesmo assim. Que pena! Que pena!". Acho que carma e consciência são crianças, talvez até irmãs gêmeas, das mais arteiras.
Entre tragos à porta dos fundos pergunto à residente que frita um filé de frango cujo aroma destacadamente adocicado  somente agora reparo:
"Você tem planos para sua vida, ou vai vivendo conforme as coisas se apresentam a você?". Essa é uma grande questão, especialmente para se perguntar assim, dessa maneira, como quem pergunta se tem coca lá na geladeira.

"Acho que assim, vou conforme as coisas vão aparecendo", ela responde, simples e um tanto reflexiva.

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