sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Cartas Lânguidas III

III. Fui convidada por um amigo para um feriado de junho em São Tomé das Letras. Disse-me que levasse uma amiga. Os meninos são assim, aparentemente; planejam monogamias para sempre, sonhando com orgias. Penso dentre as amigas e percebo que não são muitas as que topariam uma viagem de supetão com dois homens que não conhece, passar dias na casa de um deles com mais não-sei-quantos outros desconhecidos, amigos do amigo do amigo da amiga que a convida. Na verdade, a fim de registro, são duas, sendo uma delas a amiga da amiga que ia que, tendo sabido da peleja, disse que queria ir também.
Lá, o combinadinho dois-casaizinhos-para-que-todos-os-meninos-se-satisfaçam-com-o-que-é-para-cada-um é atingido; ela e o amigo do meu amigo se apaixonam e vivem seu caso. Seu.
Eu vivo, além do meu, minha. Minha vontade de fazer isso ou aquilo. De beber aquela cachaça curtida com cogumelos, mais aquele conhaque com mel, fumar aquele baseado, e aquele outro, e aquela cachaça de novo e fazer malabares com aqueles facões e socar aquele cara.
Ela quer aquele que "é meu", pela lógica que não nos empenhamos em questionar. Eu a incentivo, digo-lhe sobre as coisas que gosto e que penso que ela gostaria.
Por algum motivo - entre a falta de oportunidade, coragem de abraçá-la, e o desgostar de seu casinho -, ela não satisfaz seu desejo.
Somos duas unidades diferentes.

Há mais três casais conosco na casa e uma ou duas meninas solteiras que ficaram pelo tempo suficiente para dizer que nos "roubariam" os meninos, almoçar conosco, não lavar seu prato e sumir. Até agora me pergunto o que diabos havia com uma doida de uma "ex-namorada" para querer nos "roubar" aqueles meninos, naquela situação. Antes roubasse meu relógio, que era meu mesmo, e que me faria falta não possuí-lo mais.
Seu casinho me põe a par de suas relações sempre que acha oportuno. Pergunta-me coisas sobre ela, me pede permissão - baseado em qualquer loucura sua sobre eu ter alguma influência seja para a coisa em si que supostamente precisa de permissão, seja para "fazer a sua dando moral pra amiga" -, compartilha intimidades.
Eu, que não sou de toda besta, mas sou bem besta, não percebi exatamente o que significava tudo aquilo, e achei que tinha algum controle, pelo menos sobre mim, ali. Ledo engano, sempre, achar que detemos algum poder sobre qualquer coisa que não nossos esfíncteres.
Subimos na pirâmide badalada da cidade, viro-me de ponta cabeça,  olhando para o horizonte invertido e uma leve curvatura, que é da Terra. Fumamos um baseado e a vida é linda naquele instante antes de eu viajar demais, e de sentir a cabeça formigar, e o vento gelar, e o joelho coçar e tudo o mais que não me deixo relaxar o presente.
Ela tem aquele jeito de fazer um charme manhoso ou uma manha charmosa que convence quase todo mundo que não convive com ela sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia, a fazer tudo o que ela pedir. Sabendo disso, ou pelo menos da parte onde ela consegue convencer, ela conseguiu que seu caso nos levasse de volta a Santos em seu carro.
Ao nos despedirmos meu amigo me diz, enquanto olha-os cheios de paixão ou querência, que "isso vai dar amor".
Eu não considerei essa possibilidade, e acho que ninguém também.
Eu já acreditava que ela era a melhor e talvez única companheira de viagem para sempre, e não se fala nem se pensa mais nisso.
Faz meses, talvez um ano, desde São Tomé, e agora há um tipo de relacionamento entre eles. E eu. Quando ele vai a Santos, visita a ambas, que estão sempre juntas ou indo se encontrar. Quando telefona, e estou junto, me pergunta, confidencia, troca afeto (mais tarde não saberia mais dizer o nome disso que chamei de afeto).
Confio-lhe uma agulha de cura riscando meu tórax, no quarto dela, que está ao meu lado, segurando-me a mão.
Abraçamo-nos. Sorrimo-nos.
Certa vez ele me conta que está aborrecido ou decepcionado com o nosso amigo em comum. Diz-me que a relação deles está acabada, e por consequência de um grande erro do amigo. Incorrupto que era, estava decidido que era imperdoável o amigo. À hora, achei que, se me contava, contava também com o que eu havia de achar e dizer sobre tal coisa. Novamente, ledo engano... Não sei mais sobre sua (não) relação.
Ela então me relata como haviam decidido que eles tinham agora um "relacionamento aberto"; ela, que nunca quis um "relacionamento fechado" com ele, sugere-lhe que permaneçam se relacionando com quem e da maneira que quiserem. Ele não concorda até que, ela me diz, ele fica com outra mulher. Daí eles acertam que podem fazer isso o quanto quiserem, contanto que ela mantenha segredo sobre isso para ele.
O dia que ele me riscou o tórax, ele também o faria nela. No entanto, assim que acabamos, entre risos e satisfação, parou de conversar, desbaratinou, e foi embora silencioso, fechado, e sem riscá-la.
Isso se repetiu tantas outras vezes, ela me relatou. Passava o tempo com ela falando ao celular, dormindo, ou monossilábico. Claro, depois de gozar a vida dentro dela logo que se encontravam.
Ligava para ela a toda hora e, sempre que estávamos juntas, passava muito mais tempo do que gostaria ouvindo-o contar ou esperando-a ouvir dele algum causo emocionante e mortal pelo qual havia passado.
Essa combinação homúncula parece amarrá-la numa trama de emoções torpes, estrangeiras e superficiais, engolindo sua possibilidade de autonomia e unidade para além desse infame relacionamento. E as coisas boas parecem ser somente o gozo e a perspectiva de uma sensação boa num futuro que um dia há de vir. Ou não.  Uma música toca ao fundo: "a regra diz para comer na mesa, mas com certeza é mais gostoso comer na mão!".
Teve um final de semana que ele ia para a praia visitá-la e não foi porque o dinheiro não deu. Teve outro que ele ia, mas o carro quebrou. Tiveram vários finais de semana que ele ia descer a serra, mas o carro quebrou. Teve outro que ele enfim foi. Mas chegou tarde e foi embora cedo. Teve tempo de fazer só uma ou outra coisa com ela, e fez sua preferida e dormiu.
Ah! Têm também todas aquelas vezes que ele não liga para ela, como o prometido e usual, e ela fica preocupada com sua segurança (ele liga todos os dias, mais de uma vez, mas quando viaja ou sai com amigos e amigas, não). Daí quando finalmente se falam, ele lhe diz como passou por uma intempérie tão terrível que ela quase perde o gatinho dela e que assim, claro, ela não poderia ficar brava com alguém que passou por um perigo tão grande, mas está tudo bem agora e eles podem trocar todo o amor que lhes foi impedido antes.
A gente se vê praticamente todos os dias. Partilhamos nossas vidas em detalhes e, logo, sua relação com ele é também minha relação com ela. Eu e ele nos falamos menos. E eu tenho menos paciência, cada vez menos, com as peripécias que não me deixam mais achá-lo confiável.
Assim como ela e eu partilhamos a relação em sua origem e mágica, partilho minha nova opinião, já não tão positiva. Não sei o quanto ela leva-a em consideração, mas me deixo crer que nada, dado que somente se cala, e permanece me relatando esses acontecimentos repetidos.
Acontece que nós desenhamos uma linha muito tênue entre nossas intimidades, o que me faz participar, até contra minha vontade, de uma relação na qual não escolheria estar e, ainda por cima, dela tirando somente estes produtos, agora: a fantasia misteriosa desagradavelmente envolvente, a frustração da exigência, dos segredos que "devem" ser mantidos, do gozo perdido.
Essa porra desse "relacionamento aberto" dos infernos atravessa a minha relação com ela e com ele, de maneira que eu só posso aceitar minha infeliz posição.

Antes nós deixássemos somente aos dois, o que supostamente é dos dois.

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