sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Cartas Lânguidas IV

IV. Estou num tipo de hotel ou shopping. Há muitos consumidores circulando pelos ambientes. Homens muitos homens, claro, maiores e mais fortes e mais imponentes.

Sei que minha irmã está comigo, mas ainda não a vejo. Um homem se aproxima. Percebo que habito um tipo de cativeiro. Saibo por ele que há homens que pagam-no para transar com ela. Sugiro-lhe que eu cumpra com a tarefa, a fim de poupá-la.
Aparece-me um copo duma bebida alcoólica e divido com ela. De qualquer maneira já não era suficiente para amortecer. Que seja um quase nada para ambas, então.
Não vejo acontecer. Mas vejo que outros chegam enquanto realizo a tarefa da qual tentei poupá-la. Como estou ocupada, eles lhe são encaminhados. Eu não pude poupá-la.
Estou em um tipo de convenção. Há muitos jovens. E homens. Estou em um grande grupo reunido em pé. Eles falam alto, são estridentes e articulam mais gestos inteligíveis que palavras inteligíveis.
Pode ser que seja uma festa e estão todos bêbados. Peço a um deles um cigarro. Ele é grande. Ele me o entrega e passa seus tentáculos pelo meu corpo e me puxa para perto de si. Sinto asco e ódio. Abro a boca e dela sai algo como: "você vai fazer isso com uma mulher pequena e manca?", ele se choca. Acusa-me. Todos se viram atentamente.
"Branca?!", "você diz 'branca'?!". Estou confusa, mas lembro-me de haver dito algo semelhante ao que ouço. "Sim. Pequena e branca", digo, sem muita confiança. Olho-me, sou mesmo. Olho novamente para o homem grande. Ele é negro.
Não entendo porque estou dando seguimento. Não entendo porque defenderia o fato de ser branca para me livrar de seus tentáculos machos.
Consigo sair do grupo, coisa que não me alivia a tensão racista. O boato já correu enquanto acontecia.
Estou andando e percebo a perna esquerda doer, dificultosa de caminhar. Olho-a e vejo-a engessada. "Manca!", não 'branca'...
Chego ao outro lado do salão, envergonhada. Encontro amigos. Eles sabem que não disse 'branca'. Sirvo-me um copo de qualquer coisa alcoólica enquanto observamos a balbúrdia.
Abro os olhos. Ouço o som de um jogo de futebol sendo narrado. Olho. A janela logo abaixo de meus pés, a cômoda, as paredes, de lado, à minha frente. Estou deitada.
Tiro o corpo do coma, me espreguiço, estico as pernas, sinto meu tornozelo doer. A perna esquerda continua engessada.
Levanto-me. Saio do quarto. Ela não está na casa. Sua cama está revirada como sempre, e não me indica nada sobre seu paradeiro ou há quanto tempo está fora dela.
Sirvo-me um café de ontem, colho meu livro esquecido embaixo do sofá e sento-me na entrada da casa, para fumar o primeiro cigarro do dia.
" 'Com a palavra pensar entendo tudo o que acontece em nós de modo que o percebamos imediatamente por nós mesmos; e por isso não só entender, querer e imaginar, mas também sentir é a mesma coisa que pensar. ' (Descartes, R. Princ. Phil., I, 9). "
Atenho-me à reflexão. Ela chega, falando ao meu celular, com "o gatinho". Digo-lhe sem pensar "bom dia!", com uma entonação indesejada. Ela entra na casa sem responder.
Percebo-me menos irritada, até menos desejosa de um "ficar bem" desesperado que tantas outras vezes senti.

Nossa viagem acabou. Como há dias já havia considerado e, há dois dias disse a ela com ênfase, à beira do fogão.

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