sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Passagem

Está deitada. Os carros passam rápido demais, por aquele pequeno vão entre os prédios vizinhos, deixando a mostra alguns metros de avenida.
A buzina ganha uma musicalidade: tempo, contra-tempo, retardando e crescendo.
O tecido se move muito lentamente. Lentamente até demais. É cansativo.
Direciona o olhar para outra coisa.


A voz é familiar, as perguntas não são retóricas, porém ela não entende, mal ouve. Um corpo passa aos passos curtos da esquerda para a direita. A voz vai sumindo. Rápida esperança do silêncio. Passos curtos são ouvidos novamente, e um corpo passa, desta vez da direita para a esquerda.
Longo suspiro e sente a dor tomando conta dos ouvidos e olhos.
Vira o corpo e cabeça para o teto.

Não fosse todo o quarto no canto direito da vista, seria tudo branco.
Uma manchinha aqui, outra poeirinha mais para frente. Aperta os olhos. Tudo está preto.
Mais alguns centésimos de segundo: Não fossem todas as cores movendo-se sempre que tenta alcançá-las com os olhos ainda fechados, seria tudo negro.
Devaneio.

O alaranjado do sol toca suas pálpebras. Calor. A realidade passa a tomar conta, até que ela cái.
Quando se dá conta das quatro paredes, chão, teto, janela e humanidade, abre os olhos para se deparar com o branco manchado da parede.
Uma janela para todas as outras realidades residindo dentro dela se abre alí; Na ex-parede branca e fria do quarto.
Alguém respira perto de seu ouvido e seu corpo todo formiga, enquanto o coração desacelera. Uma mão  quente quase humana é sentida percorrer o mesmo trajeto que é visto na cena se passando no filme na parede.
Fecha os olhos e espera o devaneio. Como se tivesse escolhido para onde queria voltar.

Rua, cidade, gritos, tiros, injustiça, impotência, revolta.
Suor, cansaço, raiva, mais gritos. Perda do controle e vôo. Se tivesse controle poderia ser vôo, mas agora é como se fosse puxada para fora duma realidade que não lhe pertence. Tentar agarrar é redundante.
Abriu os olhos novamente.

Carros passam rápido demais, o tecido se move lentamente, muito lentamente. As buzinas, o sol, os passos curtos e rápidos, a voz sem sentido.
Uma brisa chacoalha a cortina, quebrando o ritmo quase dançante e faz o nariz coçar.
Mais um suspiro cansado.
Quantos dias já se passaram?

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