sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Cartas Lânguidas VIII

VIII. O que ela só sabe ser
Eu já disse o quão bonita ela é. Poderia dar detalhes estéticos apurados e analisar a forma como ela aparece no mundo; seus trejeitos, a forma como anda, senta, move-se, a maneira como tem em seus cabelos loiros e repicados por minhas mãos, em ondulações alucinantes, toda sua feminilidade freudiana, o jeito que geme quando se espreguiça e o som de sua voz quando se propõe a pedir que faças algo por ela. Não chegaria a ilustrá-la de forma minimamente justa.
Sua mãe contava-lhe uma fábula sobre duas borboletas. Uma era amarelinha e pálida, frustrada em sua aparência franzina. A outra, ah! A outra era duma gama de cores extravagante, frascária, digna da fascinação de qualquer um que em sua presença.
Gabava-se a borboleta colorida à amarela, que se via farta de inveja e auto-comiseração de toda a sua ordinedariedade perante a borboleta estrambótica.
Então um dia parece uma lagartixa faminta e, enxergando somente a borboleta colorida, abocanha-lhe a vida num golpe, encerrando toda sua estróina existência, deixando de lado, ali, imperceptível, a borboletinha de cor tão vulgar.


Acontece que essa estúpida fábula deixa passar que, na complexidade que os sentimentos podem ter, os resultado podem ser tantos outros, para além da justiça irônica e divina em que as borboletas foram postas.
Vejam que a vaidade da borboleta colorida poderia, por exemplo, ter-lhe garantido um exército de admiradores fanáticos, que, mais fortes ou simplesmente em maior quantidade que a famélica lagartixa, poderiam facilmente salvá-la de seu fim trágico. E que, não podendo a pobrezinha comer a tão atrativa e protegida borboleta, desviaria-se a atenção para a vulgarzinha mais próxima, acabando com toda a moral dessa fantástica estória de merda.
E, se na falta de admiradores que pudesse acumular em sua órbita, a borboletinha putativa poderia  talvez então confiar que a sua similar amarelo-vulgar, tomada pelo sentimento de admiração que costumeiramente precede a inveja - afinal é preciso reconhecer o extraordinário para então invejá-lo -, tomaria alguma atitude a fim de poupar o extermínio daquela bela desgraçada.

Talvez até se enfie em brigas entre machos embebecidos de seu doce sabor e, quem sabe até venha a se perceber, já sem escolha, frente a um predador fora-de-si que risca um enorme facão no chão, criando fagulhas de poder testosteronado e avança matador em direção à borboletinha idiotamente no caminho da coloridinha linda que, por sua vez, cheia de cautela consigo mesma (coisa cuja borboleta amarela não conhece, afinal, quem gostaria de preservar tamanha ordinariedade?), se resumiria a olhar o trágico rolar de corpos na terra, enquanto se quebra - talvez se trinca uma tíbia - toda a burra da amarelinha que quis não ser passiva nessa sua vida medíocre a que foi agraciada.

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