quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Demônio (VII)


VII

Lá fora a umidade crescia, liqüefazendo a crosta da terra. O chão tinha já uma sorvedora acumulação de lodo, em que o pé se atolava. As ruas estreitavam-se entre duas florestas de bolor que nasciam de cada lado das paredes.
Laura e eu, presos um ao outro pela cintura, arriscamos os primeiros passos e pusemo-nos a andar com extrema dificuldade, procurando a direção do mar, tristes e mudos, como os dois enxotados do Paraíso.
Pouco a pouco foi-nos ganhando uma profunda indiferença por toda aquela lama, em cujo ventre, nós, pobres vermes penosamente nos movíamos. E deixamos que os nossos espíritos, desarmados da faculdade de falar, se procurassem e se entendessem por conta própria, num misterioso idílio em que as nossas almas se estreitavam e se confundiam.
Agora, já não nos era preciso unir as frontes ou os lábios para trocar idéias e pensamentos. Nossos cérebros travavam entre si contínuo e silencioso diálogo, que em parte nos adoçava as penas daquela triste viagem para a Morte; enquanto os nossos corpos esquecidos, iam maquinalmente prosseguindo, passo a passo, por entre o limo pegajoso e úmido.
Lembrei-me das provisões que trazia na algibeira; ofereci-lhas; Laura recusou-as, afirmando que não tinha fome.
Deparei então que eu também não sentia agora a menor vontade de comer e, o que era mais singular, não sentia frio.
E continuamos a nossa peregrinação e o nosso diálogo. Ela, de vez em quando, repousava a cabeça no meu ombro, e parávamos para descansar.
Mas o lodo crescia, e o bolor condensava-se de um lado e de outro lado, mal nos deixando uma estreita vereda por onde, no entanto, prosseguíamos sempre, arrastando-nos abraçados.
Já não tateávamos o caminho, nem era preciso, porque não havia que recear o menor choque. Por entre a densa vegetação do mofo, nasciam agora da direita e da esquerda, almofadando a nossa passagem, enormes cogumelos e fungões, penugentos e veludados, contra os quais escorregávamos como por sobre arminhos podres.
Àquela absoluta ausência do sol e do calor, formavam-se e cresciam esses monstros da treva, disformes seres úmidos e moles; tortulhos gigantescos cujas polpas esponjosas, como imensos tubérculos de tísico, nossos braços não podiam abarcar. Era horrível senti-los crescer assim fantasticamente, inchando ao lado e defronte uns dos outros como se toda a atividade molecular e toda a força agregativa e atômica que povoava a terra, os céus e as águas, viessem concentrar-se neles, para neles resumir a vida inteira. Era horrível, para nós, que nada mais ouvíamos, senti-los inspirar e respirar, como animais, sorvendo gulosamente o oxigênio daquela infindável noite.
Ai! desgraçados de nós, minha querida Laura! De tudo que vivia à luz do sol só eles persistiam; só eles e nós dois, tristes privilegiados naquela fria e tenebrosa desorganização do mundo!
Meu Deus! Era como se nesse nojento viveiro, borbulhante do lodo e da treva, viera refugiar-se a grande alma do Mal, depois de repelida por todos os infernos.
Respiramos um momento sem trocar uma idéia; depois, resignados, continuamos a caminhar para diante, presos à cintura um do outro, como dois míseros criminosos condenados a viver eternamente.

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