XI
De
uma feita, porém, ao levantar-me do chão, senti os pés trôpegos,
pesados, e como que propensos a se entranharem por ele. Apalpei-os e encontrei
as unhas moles e abafadas, a despregarem-se. Laura, junto de mim, observou em
si a mesma cousa. Começamos logo a tirá-las com os dentes, sem experimentarmos
a menor dor; depois passamos a fazer o mesmo com as das mãos; ás
pontas dos nossos dedos logo que se acharam despojadas das unhas, transformaram-se
numa espécie de ventosa do polvo, numas bocas de sanguessuga, que se dilatavam
e contraíam incessantemente, sorvendo gulosas o ar e a umidade. Começaram-nos
os pés a radiar em longos e ávidos tentáculos de pólipo;
e os seus filamentos e as suas radículas eminhocaram pelo lodo fresco do
chão, procurando sôfregos internar-se bem na terra, para ir lá
dentro beber-lhes o húmus azotado e nutriente; enquanto os dedos das mãos
esgalhavam, um a um, ganhando pelo espaço e chupando o ar voluptuosamente
pelos seus respiradouros, fossando e fungando, irrequietos e morosos, como trombas
de elefante.
Desesperado, ergui-me em toda a minha colossal
estatura de gigante e sacudi os braços, tentando dar um arranco, para soltar-me
do solo. Foi inútil. Nem só não consegui despregar meus pés
enraizados no chão, como fiquei de mãos atira das para o alto, numa
postura mística como arrebatado num êxtase religioso, imóvel.
Laura, igualmente presa à terra, ergueu-se rente comigo, peito a peito,
entrelaçando nos meus seus braços esgalhados e procurando unir sua
boca à minha boca.
E assim nos quedamos para sempre,
aí plantados e seguros, sem nunca mais nos soltarmos um do outro, nem mais
podermos mover com os nossos duros membros contraídos. E, pouco a pouco,
nossos cabelos e nossos pêlos se nos foram desprendendo e caindo lentamente
pelo corpo abaixo. E cada poro que eles deixavam era um novo respiradouro que
se abria para beber a noite tenebrosa. Então sentimos que o nosso sangue
ia-se a mais e mais se arrefecendo e desfibrinando, até ficar de todo transformado
numa seiva linfática e fria. Nossa medula começou a endurecer e
revestir-se de camadas lenhosas, que substituíam os ossos e os músculos;
e nós fomos surdamente nos lignificando, nos encascando, a fazer-nos fibrosos
desde o tronco até às hastes e às estipulas.
E
os nossos pés, num misterioso trabalho subterrâneo, continuavam a
lançar pelas entranhas da terra as suas longas e insaciáveis raízes;
e os dedos das nossas mãos continuavam a multiplicar-se, a crescer e a
esfolhar, como galhos de uma árvore que reverdece. Nossos olhos desfizeram-se
em goma espessa e escorreram-nos pela crosta da cara, secando depois como resina;
e das suas órbitas vazias começavam a brotar muitos rebentões
viçosos. Os dentes despregaram-se, um por um, caindo de per si, e as nossas
bocas murcharam-se inúteis, vindo, tanto delas, como de nossas ventas já
sem faro, novas vergônteas e renovos que abriam novas folhas e novas brácteas.
E agora só por estas e pelas extensas raízes de nossos pés
é que nos alimentávamos para viver.
E vivíamos.
Uma
existência tranqüila, doce, profundamente feliz, em que não
havia desejos, nem saudades; uma vida imperturbável e surda, em que os
nossos braços iam por si mesmos se estendendo preguiçosamente para
o céu, a reproduzirem novos galhos donde outros rebentavam, cada vez mais
copados e verdejantes. Ao passo que as nossas pernas, entrelaçadas num
só caule, cresciam e engrossavam, cobertas de armaduras corticais, fazendo-se
imponentes e nodosas, como os estalados troncos desses velhos gigantes das florestas
primitivas.
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