X
Aproximamo-nos
daquele pobre oceano morto. Tentei invadi-lo, mas meus pés não acharam
que distinguir entre sua fosforescente gelatina e a lama negra da terra, tudo
era igualmente lodo.
Laura conservava-se imóvel como
que aterrada defronte do imenso cadáver luminoso. Agora, assim contra a
embaciada lâmina das águas, nossos perfis se destacavam tão
bem, como, ao longe, se destacavam as ruínas dos navios. Já nos
não recordávamos da nossa intenção de afogar-nos juntos.
Com um gesto chamei-a para meu lado. Laura, sem dar um passo, encarou-me com espanto,
estranhando-me. Tornei a chamá-la; não veio.
Fui
ter então com ela; ao ver-me, porém, aproximar, deu medrosa um ligeiro
salto para trás e pôs-se a correr pela extensão da praia,
como se fugisse a um monstro desconhecido.
Precipitei-me
também, para alcançá-la. Vendo-se perseguida, atirou-se ao
chão, a galopar, quadrupedando que nem um animal. Eu fiz o mesmo, e cousa
singular! notei que me sentia muito mais à vontade nessa posição
de quadrúpede do que na minha natural posição de homem.
Assim
galopamos longo tempo à beira-mar; mas, percebendo que a minha companheira
me fugia assustada para o lado das trevas, tentei detê-la, soltei um grito,
soprando com toda a força o ar dos meus pulmões de gigante. Nada
mais consegui do que dar um ronco de besta; Laura, todavia respondeu com outro.
Corri para ela e os nossos berros ferozes perderam-se longamente por aquele mundo
vazio e morto.
Alcancei-a por fim; ela havia caído
por terra, prostrada de fadiga. Deitei-me ao seu lado, rosnando ofegante de cansaço.
Na escuridão reconheceu-me logo; tomou-me contra o seu corpo e afagou-me
instintivamente.
Quando resolvemos continuar a nossa peregrinação,
foi de quatro pés que nos pusemos a andar ao lado um do outro, naturalmente
sem dar por isso.
Então meu corpo principiou a revestir-se
de um pêlo espesso. Apalpei as costas de Laura e observei que com ela acontecia
a mesma cousa.
Assim era melhor, porque ficaríamos
perfeitamente abrigados do frio, que agora aumentava.
Depois,
senti que os meus maxilares se dilatavam de modo estranho, e que as minhas presas
cresciam, tornando-se mais fortes, mais adequadas ao ataque, e que, lentamente,
se afastavam dos dentes queixais; e que meu crânio se achatava; e que a
parte inferior do meu rosto se alongava para a frente, afilando como um focinho
de cão; e que meu nariz deixava de ser aquilino e perdia a linha vertical,
para acompanhar o alongamento da mandíbula; e que enfim as minhas ventas
se patenteavam, arregaçadas para o ar, úmidas e frias.
Laura,
ao meu lado, sofria iguais transformações.
E
notamos que, à medida que se nos apagavam uns restos de inteligência
e o nosso tato se perdia, apurava-se-nos o olfato de um modo admirável,
tomando as proporções de um faro certeiro e sutil, que alcançava
léguas.
E galopávamos contentes ao lado um
do outro, grunhindo e sorvendo o ar, satisfeitos de existir assim. Agora, o fartum
da terra encharcada e das matérias em decomposição, longe
de enjoar-nos, chamava-nos a vontade de comer. E os meus bigodes, cujos fios se
inteiriçavam como cerdas de porco, serviam-me para sondar o caminho, porque
as minhas mãos haviam afinal perdido de todo a delicadeza do tato.
Já
não me lembrava por melhor esforço que empregasse, uma só
palavra do meu idioma, como se eu nunca tivera falado. Agora, para entender-me
com Laura, era preciso uivar; e ela me respondia do mesmo modo.
Não
conseguia também lembrar-me nitidamente de como fora o mundo antes daquelas
trevas e daquelas nossas metamorfoses, e até já me não recordava
bem de como tinha sido a minha própria fisionomia primitiva, nem a de Laura.
Entretanto, meu cérebro funcionava ainda, lá a seu modo, porque,
afinal, tinha eu consciência de que existia e preocupava-me em conservar
junto de mim a minha companheira, a quem agora só com os dentes afagava.
Quanto
tempo se passou assim para nós, nesse estado de irracionais, é o
que não posso dizer; apenas sei que, sem saudades de outra vida, trotando
ao lado um do outro, percorríamos então o mundo perfeitamente familiarizados
com a treva e com a lama, esfocinhando no chão, à procura de raízes,
que devorávamos com prazer; e sei que, ao sentir-nos cansados, nos estendíamos
por terra, juntos e tranqüilos, perfeitamente felizes, porque não
pensávamos e porque não sofríamos.
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