I
Quase
nunca trabalhava à noite; às vezes, porém, quando me sucedia
acordar fora de horas, sem vontade de continuar a dormir, ia para a mesa e esperava
lendo ou escrevendo que amanhecesse.
Uma ocasião
acordei assim, mas sem consciência de nada, como se viesse de um desses
longos sonos de doente a decidir; desses profundos e silenciosos, em que não
há sonhos, e dos quais, ou se desperta vitorioso para entrar em ampla convalescença,
ou se sai apenas um instante para mergulhar logo nesse outro sono, ainda mais
profundo, donde nunca mais se volta.
Olhei em torno de mim,
admirado do longo espaço que me separava da vida e, logo que me senti mais
senhor das minhas faculdades, estranhei não perceber o dia através
das cortinas do quarto, c não ouvir, como de costume, pipilarem as cambachirras
defronte das janelas por cima dos telhados.
- É que
naturalmente ainda não amanheceu. Também não deve tardar
muito... calculei, saltando da cama e enfiando o roupão de banho, disposto
a esperar sua alteza o sol, assentado à varanda a fumar um cigarro.
Entretanto,
cousa singular! parecia-me ter dormido em demasia; ter dormido muito mais da minha
conta habitual. Sentia-me estranhamente farto de sono; tinha a impressão
lassa de quem passou da sua hora de acordar e foi entrando, a dormir pelo dia
e pela tarde, como só nos acontece depois de uma grande extenuação
nervosa ou tendo anteriormente perdido muitas noites seguidas.
Ora,
comigo não havia razão para semelhante cousa, porque, justamente
naqueles últimos tempos, desde que estava noivo, recolhia-me sempre cedo
e cedo me deitava. Ainda na véspera, lembro-me bem, depois do jantar saíra
apenas a dar um pequeno passeio, fizera à família de Laura a minha
visita de todos os dias, e às dez horas já estava de volta, estendido
na cama, com um livro aberto sobre o peito, a bocejar. Não passariam de
onze e meia quando peguei no sono.
Sim! não havia
dúvida que era bem singular não ter amanhecido!... pensei, indo
abrir uma das janelas da varanda.
Qual não foi, porém,
a minha decepção quando, interrogando o nascente, dei com ele ainda
completamente fechado e negro, e, abaixando o olhar, vi a cidade afogada em trevas
e sucumbida no mais profundo silêncio!
- Oh! Era singular,
muito singular!
No céu as estrelas pareciam amortecidas,
de um bruxulear difuso e pálido; nas ruas os 1ampiões mal se acusavam
por longas reticências de uma luz deslavada e triste. Nenhum operário
passava para o trabalho; não se ouvia o cantarolar de um ébrio,
o rodar de um carro, nem o ladrar de um cão.
Singular!
muito singular!
Acendi a veia e corri ao meu relógio
de algibeira. Marcava meia-noite. Levei-o ao ouvido, com avidez de quem consulta
o coração de um moribundo; já não pulsava: tinha esgotado
toda a corda. Fi-lo começar a trabalhar de novo, mas as suas pulsações
eram tão fracas, que só com extrema dificuldade conseguia eu distingui-las.
-
É singular! muito singular! repetia, calculando que, se o relógio
esgotara toda a corda, era porque eu então havia dormido muito mais ainda
do que supunha! eu então atravessara um dia inteiro sem acordar e entrara
do mesmo modo pela noite seguinte.
Mas, afinal que horas
seriam?...
Tornei à varanda, para consultar de novo
aquela estranha noite, em que as estrelas desmaiavam antes de chegar a aurora.
E a noite nada me respondeu, fechada no seu egoísmo surdo e tenebroso.
Que
horas seriam?... Se eu ouvisse algum relógio da vizinhança!... Ouvir?...
Mas se em torno de mim tudo parecia entorpecido e morto?...
E
veio-me a dúvida de que eu tivesse perdido a faculdade de ouvir durante
aquele maldito sono de tantas horas; fulminado por esta idéia, precipitei-me
sobre o tímpano da mesa e vibrei-o com toda a força.
O
som fez-se, porém, abafado e lento, como se lutasse com grande resistência
para vencer o peso do ar.
E só então notei
que a luz da vela, à semelhança do som do tímpano, também
não era intensa e clara como de ordinário e parecia oprimida por
uma atmosfera de catacumba.
Que significaria isto?... que
estranho cataclismo abalaria o mundo?... que teria acontecido de tão transcendente
durante aquela minha ausência da vida, para que eu, à volta, viesse
encontrar o som e a luz, as duas expressões mais impressionadoras do mundo
físico, assim trôpegas e assim vacilantes, nem que toda a natureza
envelhecesse maravilhosamente enquanto eu tinha os olhos fechados e o cérebro
em repouso?!...
- Ilusão minha, com certeza! que
louca és tu, minha pobre fantasia! Daqui a nada estará amanhecendo,
e todos estes teus caprichos, teus ou da noite, essa outra doida, desaparecerão
aos primeiros raios do sol. O melhor é trabalharmos! Sinto-me até
bem disposto para escrever! trabalhemos, que daqui a pouco tudo reviverá
como nos outros dias! de novo os vales e as montanhas se farão esmeraldinas
e alegres; e o céu transbordará da sua refulgente concha de turquesa
a opulência das cores e das luzes; e de novo ondulará no espaço
a música dos ventos; e as aves acordarão as rosas dos campos com
os seus melodiosos duetos de amor! Trabalhemos! Trabalhemos!
Acendi
mais duas velas, porque só com a primeira quase que me era impossível
enxergar; arranjei-me ao lavatório; fiz uma xícara de café
bem forte, tomei-a, e fui para a mesa de trabalho.
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