VII
Lá
fora a umidade crescia, liqüefazendo a crosta da terra. O chão tinha
já uma sorvedora acumulação de lodo, em que o pé se
atolava. As ruas estreitavam-se entre duas florestas de bolor que nasciam de cada
lado das paredes.
Laura e eu, presos um ao outro pela cintura,
arriscamos os primeiros passos e pusemo-nos a andar com extrema dificuldade, procurando
a direção do mar, tristes e mudos, como os dois enxotados do Paraíso.
Pouco
a pouco foi-nos ganhando uma profunda indiferença por toda aquela lama,
em cujo ventre, nós, pobres vermes penosamente nos movíamos. E deixamos
que os nossos espíritos, desarmados da faculdade de falar, se procurassem
e se entendessem por conta própria, num misterioso idílio em que
as nossas almas se estreitavam e se confundiam.
Agora, já
não nos era preciso unir as frontes ou os lábios para trocar idéias
e pensamentos. Nossos cérebros travavam entre si contínuo e silencioso
diálogo, que em parte nos adoçava as penas daquela triste viagem
para a Morte; enquanto os nossos corpos esquecidos, iam maquinalmente prosseguindo,
passo a passo, por entre o limo pegajoso e úmido.
Lembrei-me
das provisões que trazia na algibeira; ofereci-lhas; Laura recusou-as,
afirmando que não tinha fome.
Deparei então
que eu também não sentia agora a menor vontade de comer e, o que
era mais singular, não sentia frio.
E continuamos
a nossa peregrinação e o nosso diálogo. Ela, de vez em quando,
repousava a cabeça no meu ombro, e parávamos para descansar.
Mas
o lodo crescia, e o bolor condensava-se de um lado e de outro lado, mal nos deixando
uma estreita vereda por onde, no entanto, prosseguíamos sempre, arrastando-nos
abraçados.
Já não tateávamos
o caminho, nem era preciso, porque não havia que recear o menor choque.
Por entre a densa vegetação do mofo, nasciam agora da direita e
da esquerda, almofadando a nossa passagem, enormes cogumelos e fungões,
penugentos e veludados, contra os quais escorregávamos como por sobre arminhos
podres.
Àquela absoluta ausência do sol e do
calor, formavam-se e cresciam esses monstros da treva, disformes seres úmidos
e moles; tortulhos gigantescos cujas polpas esponjosas, como imensos tubérculos
de tísico, nossos braços não podiam abarcar. Era horrível
senti-los crescer assim fantasticamente, inchando ao lado e defronte uns dos outros
como se toda a atividade molecular e toda a força agregativa e atômica
que povoava a terra, os céus e as águas, viessem concentrar-se neles,
para neles resumir a vida inteira. Era horrível, para nós, que nada
mais ouvíamos, senti-los inspirar e respirar, como animais, sorvendo gulosamente
o oxigênio daquela infindável noite.
Ai! desgraçados
de nós, minha querida Laura! De tudo que vivia à luz do sol só
eles persistiam; só eles e nós dois, tristes privilegiados naquela
fria e tenebrosa desorganização do mundo!
Meu
Deus! Era como se nesse nojento viveiro, borbulhante do lodo e da treva, viera
refugiar-se a grande alma do Mal, depois de repelida por todos os infernos.
Respiramos
um momento sem trocar uma idéia; depois, resignados, continuamos a caminhar
para diante, presos à cintura um do outro, como dois míseros criminosos
condenados a viver eternamente.
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