terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Demônios (IV)

IV
Mas a fome torturava-me cada vez mais fúria. Era impossível levar mais tempo sem comer. Antes de socorrer o coração era preciso socorrer o estômago.
A fome! O amor! Mas, como todos os outros morriam em volta de mim e eu pensava em amor e eu tinha fome!... A fome, que é a voz mais poderosa do instinto da conservação pessoal, como o amor é a voz do instinto da conservação da espécie! A fome e o amor, que são a garantia da vida; os dois inalteráveis pólos do eixo em que há milhões de séculos gira misteriosamente o mundo orgânico!
E, no entanto, não podia deixar de comer antes de mais nada. Quantas horas teriam decorrido depois da minha última refeição?... Não sabia; não conseguia calcular sequer. O meu relógio, agora inútil, marcava estupidamente doze horas. Doze horas de quê?.... Doze horas!... Que significaria esta palavra?...
Arremessei o relógio para longe de mim, despedaçando-o contra a parede.
Ó meu Deus! se continuasse para sempre aquela incompreensível noite, como poderia eu saber os dias que se passavam?... Como poderia marcar as semanas e os meses?... O tempo é o sol; se o sol nunca mais voltasse, o tempo deixaria de existir!
E eu me senti perdido num grande Nada indefinido, vago, sem fundo e sem contornos.
Meu Deus! meu Deus! quando terminaria aquele suplício?
Desci ao andar térreo da casa, apressando-me agora para aproveitar a mesquinha luz da vela que, pouco a pouco, me abandonava também.
Oh! só a idéia de que era aquela a derradeira luz que me restava!... A idéia da escuridão completa que seria depois, fazia-me gelar o sangue. Trevas e mortos, que horror!
Penetrei na sala de jantar. À porta tropecei no cadáver de um cão; passei adiante. O criado jazia estendido junto à mesa, espumando pela boca e pelas ventas; não fiz caso. Do fundo dos quartos vinha já um bafo enjoativo de putrefação ainda recente.
Arrombei o armário, apoderei-me da comida que lá havia e devorei-a como um animal, sem procurar talher. Depois bebi, sem copo, uma garrafa de vinho. E, logo que senti o estômago reconfortado, e, logo que o vinho me alegrou o corpo, foi-se-me enfraquecendo a idéia de morrer com os outros e foi-me nascendo a esperança de encontrar vivos lá fora, na rua. Mal era que a luz da vela minguara tanto que agora brilhava menos que um pirilampo. Tentei acender outras. Vão esforço! a luz ia deixar de existir.
E, antes que ela me fugisse para sempre, comecei a encher as algibeiras com o que sobrou da minha fome.
Era tempo! era tempo! porque a miserável chama, depois de espreguiçar-se um instante, foi-se contraindo, a tremer, a tremer, bruxuleando, até sumir-se de todo, como o extremo lampejo do olhar de um moribundo.
E fez-se então a mais completa, a mais cerrada escuridão que é possível conceber. Era a treva absoluta; treva de morte; treva de caos; treva que só compreende quem tiver os olhos arrancados e as órbitas entupidas de terra.
Foi terrível o meu abalo, fiquei espavorido, como se ela me apanhasse de surpresa. Inchou-se-me por dentro o coração, sufocando-me a garganta; gelou-se-me a medula e secou-se-me a língua. Senti-me como entalado ainda vivo no fundo de um túmulo estreito; senti desabar sobre minha pobre alma, com todo o seu peso de maldição, aquela imensa noite negra e devoradora.
Imóvel, arquejei por algum tempo nesta agonia. Depois estendi os braços e, arrastando os pés, procurei tirar-me dali às apalpadelas.
Atravessei o longo corredor, esbarrando em tudo, como um cego sem guia, e conduzi-me lentamente até ao portão de entrada.
Saí.
Lá fora, na rua, o meu primeiro impulso foi olhar para o espaço; estava tão negro e tão mudo como a terra. A luz dos lampiões apagara-se de todo e no céu já não havia o mais tênue vestígio de uma estrela.
Treva! Treva e só treva!
Mas eu conhecia muito bem o caminho da casa de minha noiva, e havia de lá chegar, custasse o que custasse!
Dispus-me a partir, tateando o chão com os pés sem despregar das paredes as minhas duas mãos abertas na altura do rosto.
Passo a passo, venci até à primeira esquina. Esbarrei com um cadáver encostado às grades de um jardim; apalpei-o, era um polícia. Não me detive; segui adiante, dobrando para a rua transversal.
Começava a sentir frio. Uma densa umidade saía da terra, tornando aquela maldita noite ainda mais dolorosa. Mas não desanimei, prossegui pacientemente, medindo o meu caminho, palmo a palmo, e procurando reconhecer pelo tato o lugar em que me achava.
E seguia, seguia lentamente.
Já me não abalavam os cadáveres com que eu topava pelas calçadas. Todo o meu sentido se me concentrava nas mãos; a minha única preocupação era me não desorientar e perder na viagem.
E lá ia, lá ia, arrastando-me de porta em porta, de casa em casa, de rua em rua, com a silenciosa resignação dos cegos desamparados.
De vez em quando, era preciso deter-me um instante, para respirar mais à vontade. Doíam-me os braços de os ter continuamente erguidos. Secava-se-me a boca. Um enorme cansaço invadia-me o corpo inteiro. Há quanto tempo durava já esta tortura? não sei; apenas sentia claramente que pelas paredes, o bolor principiava a formar altas camadas de uma vegetação aquosa, e que meus pés se encharcavam cada vez mais no lodo que o solo ressumbrava.
Veio-me então o receio de que eu, daí a pouco, não pudesse reconhecer o caminho e não lograsse por conseguinte chegar ao meu destino. Era preciso, pois, não perder um segundo; não dar tempo ao bolor e à lama de esconderem de todo o chão e as paredes.
E procurei, numa aflição, aligeirar o passo, a despeito da fadiga que me acabrunhava. Mas, ah! era impossível conseguir mais do que arrastar-me penosamente, como um verme ferido.
E o meu desespero crescia com a minha impotência e com o meu sobressalto.
Miséria! Agora já me custava até distinguir o que meus dedos tateavam, porque o frio os tornara dormentes e sem tato. Mas arrastava-me, arquejante, sequioso, coberto de suor, sem fôlego; mas arrastava-me.
Arrastava-me.
Afinal uma alegria agitou-me o coração: minhas mãos acabavam de reconhecer as grades do jardim de Laura. Reanimou-me a alma. Mais alguns passos somente, e estaria à sua porta!
Fiz um extremo esforço e rastejei até lá.
Enfim!
E deixei-me cair prostrado, naquele mesmo patamar, que eu, dantes, tantas vezes atravessara ligeiro e alegre, com o peito a estalar-me de felicidade.
A casa estava aberta. Procurei o primeiro degrau da escada e aí caí de rojo, sem forças ainda para galgá-la.
E resfoleguei, com a cabeça pendida, os braços abandonados ao descanso, as pernas entorpecidas pela umidade. E, todavia, ai de mim! as minhas esperanças feneciam ao frio sopro de morte que vinha lá de dentro.
Nem um rumor! Nem o mais leve murmúrio! Nem o mais ligeiro sinal de vida! Terrível desilusão aquele silêncio pressagiava!
As lágrimas começaram a correr-me pelo rosto também silenciosas.
Descansei longo tempo! depois ergui-me e pus-me a subir a escada, lentamente, lentamente.

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