terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Demônio (V)

V

Ah! Quantas recordações aquela escada me trazia!... Era aí, nos seus últimos degraus, junto às grades de madeira polida que eu, todos os dias, ao despedir-me de Laura, trocava com esta o silencioso juramento do nosso olhar. Foi aí que eu pela primeira vez lhe beijei a sua formosa e pequenina mão de brasileira.
Estaquei, todo vergado lá para dentro, escutando.
Nada!
Entrei na sala de visitas, vagarosamente, abrindo caminho com os braços abertos, como se nadasse na escuridão. Reconheci os primeiros objetos em que tropecei; reconheci o velho piano em que ela costumava tocar as suas peças favoritas; reconheci as estantes, pejadas de partituras, em que nossas mãos muitas vezes se encontraram, procurando a mesma música; e depois, avançando alguns passos de sonâmbulo, dei com a poltrona, a mesma poltrona em que ela, reclinada, de olhos baixos e chorosos ouviu corando o meu protesto de amor, quando, também pela primeira vez, me animei a confessar-lho.
Oh! como tudo isso agora me acabrunhava de saudade!... Conhecemo-nos havia cousa de cinco anos; Laura então era ainda quase uma criança e eu ainda não era bem um homem. Vimo-nos um domingo, pela manhã, ao sairmos da missa. Eu ia ao lado de minha mãe, que nesse tempo ainda existia e...
Mas, para que reviver semelhantes recordações?... Acaso tinha eu o direito de pensar em amor?... Pensar em amor, quando em torno de mim o mundo inteiro se transformava em lodo?...
Esbarrei contra uma mesinha redonda, tateei-a, achei sobre ela, entre outras cousas, uma bilha d'água; bebi sequiosamente. Em seguida procurei achar a porta, que comunicava com o interior da casa; mas vacilei. Tremiam-me as pernas e arquejava-me o peito.
Oh! Já não podia haver o menor vislumbre de esperança! Aquele canto sagrado e tranqüilo, aquela habitação da honestidade e do pudor, também tinham sido varridos pelo implacável sopro!
Mas era preciso decidir-me a entrar. Quis chamar por alguém; não consegui articular mais do que o murmúrio de um segredo indistinguível.
Fiz-me forte; avancei às apalpadelas. Encontrei uma porta; abri-a. Penetrei numa saleta; não encontrei ninguém. Caminhei para diante; entrei na primeira alcova, tateei o primeiro cadáver.
Pelas barbas reconheci logo o pai de Laura. Estava deitado no seu leito; tinha a boca úmida e viscosa.
Limpei as mãos à roupa e continuei a minha tenebrosa revista.
No quarto imediato a mãe de minha noiva jazia ajoelhada defronte do seu oratório; ainda com as mãos postas, mas o rosto já pendido para a terra. Corri-lhe os dedos pela cabeça; ela desabou para o lado, dura como uma estátua. A queda não produziu ruído.
Continuei a andar.
O quarto que se seguia era o de Laura; sabia-o perfeitamente. O coração agitou-se-me sobressaltado; mas fui caminhando sempre com os braços estendidos e a respiração convulsa.
Nunca houvera ousado penetrar naquela casta alcova de donzela, e um respeito profundo imobilizou-me junto à porta, como se me pesasse profanar com a minha presença tão puro e religioso asilo do pudor. Era, porém, indispensável que eu me convencesse de que Laura também me havia abandonado como os outros; que me convencesse de que ela consentira que a sua alma, que era só minha, partisse com as outras almas desertoras; que eu disso me convencesse, para então cair ali mesmo a seus pés, fulminado, amaldiçoando a Deus e à sua loucura!
E havia de ser assim! Havia de ser assim, porque antes, mil vezes antes, morto com ela do que vivo sem a possuir!
Entrei no quarto. Apalpei as trevas. Não havia sequer o rumor da asa de uma mosca. Adiantei-me.
Achei uma estreita cama, castamente velada por ligeiro cortinado de cambraia. Afastei-o e, continuando a tatear, encontrei um corpo, mimoso e franzino todo fechado num roupão de flanela. Reconheci aqueles formosos cabelos cetinosos: reconheci aquela carne delicada e virgem; aquela pequenina mão, e também reconheci a aliança, que eu mesmo lhe colocara num dos dedos.
Mas oh! Laura, a minha estremecida Laura, estava tão fria e tão inanimada como os outros!
E um fluxo de soluços, abafados e sem eco, saiu-me do coração.
Ajoelhei-me junto à cama e, tal como fizera com as minhas violetas, debrucei-me sobre aquele pudibundo rosto já sem vida, para respirar-lhe o bálsamo da alma. Longo tempo meus lábios, que as lágrimas ensopavam, àqueles frios lábios se colaram, no mais sentido, no mais terno e profundo beijo que se deu sobre a terra.
- Laura! balbuciei tremente. Ó minha Laura! Pois será possível que tu, pobre e querida flor, casta companheira das minhas esperanças! será possível que tu também me abandonasses... sem uma palavra ao menos... indiferente e alheia como os outros?... Para onde tão longe e tão precipitadamente te partiste, doce amiga, que do nosso mísero amor nem a mais ligeira lembrança me deixaste?...
E cingindo-a nos meus braços, tomei-a contra o peito, a soluçar de dor e de saudade.
- Não; não! disse-lhe sem voz. Não me separarei de ti, adorável despojo! Não te deixarei aqui sozinha, minha Laura! Viva, eras tu que me conduzias às mais altas regiões do ideal e do amor; viva, eras tu que davas asas ao meu espírito, energia ao meu coração e garras ao meu talento! Eras tu, luz de minha alma, que me fazias ambicionar futuro, glória, imortalidade! Morta, hás de arrastar-me contigo ao insondável pélago do Nada! Sim! Desceremos ao abismo, os dois, abraçados, eternamente unidos, e lá ficaremos para sempre, como duas raízes mortas, entretecidas e petrificadas no fundo da terra!
E, em vão tentando falar assim, chamei-a de todo contra meu corpo, entre soluços, osculando-lhe os cabelos.
Ó meu Deus! Estaria sonhando?... Dir-se-ia que a sua cabeça levemente se movera para melhor repousar sobre meu ombro!... Não seria ilusão do meu próprio amor despedaçado?...
- Laura! tentei dizer, mas a voz não me passava da garganta.
E colei de novo os meus lábios contra os lábios dela.
- Laura! Laura!
Oh! Agora sentira perfeitamente. Sim! sim! não me enganava! Ela vivia! Ela vivia ainda, meu Deus!

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