V
Ah!
Quantas recordações aquela escada me trazia!... Era aí, nos
seus últimos degraus, junto às grades de madeira polida que eu,
todos os dias, ao despedir-me de Laura, trocava com esta o silencioso juramento
do nosso olhar. Foi aí que eu pela primeira vez lhe beijei a sua formosa
e pequenina mão de brasileira.
Estaquei, todo vergado
lá para dentro, escutando.
Nada!
Entrei
na sala de visitas, vagarosamente, abrindo caminho com os braços abertos,
como se nadasse na escuridão. Reconheci os primeiros objetos em que tropecei;
reconheci o velho piano em que ela costumava tocar as suas peças favoritas;
reconheci as estantes, pejadas de partituras, em que nossas mãos muitas
vezes se encontraram, procurando a mesma música; e depois, avançando
alguns passos de sonâmbulo, dei com a poltrona, a mesma poltrona em que
ela, reclinada, de olhos baixos e chorosos ouviu corando o meu protesto de amor,
quando, também pela primeira vez, me animei a confessar-lho.
Oh!
como tudo isso agora me acabrunhava de saudade!... Conhecemo-nos havia cousa de
cinco anos; Laura então era ainda quase uma criança e eu ainda não
era bem um homem. Vimo-nos um domingo, pela manhã, ao sairmos da missa.
Eu ia ao lado de minha mãe, que nesse tempo ainda existia e...
Mas,
para que reviver semelhantes recordações?... Acaso tinha eu o direito
de pensar em amor?... Pensar em amor, quando em torno de mim o mundo inteiro se
transformava em lodo?...
Esbarrei contra uma mesinha redonda,
tateei-a, achei sobre ela, entre outras cousas, uma bilha d'água; bebi
sequiosamente. Em seguida procurei achar a porta, que comunicava com o interior
da casa; mas vacilei. Tremiam-me as pernas e arquejava-me o peito.
Oh!
Já não podia haver o menor vislumbre de esperança! Aquele
canto sagrado e tranqüilo, aquela habitação da honestidade
e do pudor, também tinham sido varridos pelo implacável sopro!
Mas
era preciso decidir-me a entrar. Quis chamar por alguém; não consegui
articular mais do que o murmúrio de um segredo indistinguível.
Fiz-me
forte; avancei às apalpadelas. Encontrei uma porta; abri-a. Penetrei numa
saleta; não encontrei ninguém. Caminhei para diante; entrei na primeira
alcova, tateei o primeiro cadáver.
Pelas barbas reconheci
logo o pai de Laura. Estava deitado no seu leito; tinha a boca úmida e
viscosa.
Limpei as mãos à roupa e continuei
a minha tenebrosa revista.
No quarto imediato a mãe
de minha noiva jazia ajoelhada defronte do seu oratório; ainda com as mãos
postas, mas o rosto já pendido para a terra. Corri-lhe os dedos pela cabeça;
ela desabou para o lado, dura como uma estátua. A queda não produziu
ruído.
Continuei a andar.
O
quarto que se seguia era o de Laura; sabia-o perfeitamente. O coração
agitou-se-me sobressaltado; mas fui caminhando sempre com os braços estendidos
e a respiração convulsa.
Nunca houvera ousado
penetrar naquela casta alcova de donzela, e um respeito profundo imobilizou-me
junto à porta, como se me pesasse profanar com a minha presença
tão puro e religioso asilo do pudor. Era, porém, indispensável
que eu me convencesse de que Laura também me havia abandonado como os outros;
que me convencesse de que ela consentira que a sua alma, que era só minha,
partisse com as outras almas desertoras; que eu disso me convencesse, para então
cair ali mesmo a seus pés, fulminado, amaldiçoando a Deus e à
sua loucura!
E havia de ser assim! Havia de ser assim, porque
antes, mil vezes antes, morto com ela do que vivo sem a possuir!
Entrei
no quarto. Apalpei as trevas. Não havia sequer o rumor da asa de uma mosca.
Adiantei-me.
Achei uma estreita cama, castamente velada
por ligeiro cortinado de cambraia. Afastei-o e, continuando a tatear, encontrei
um corpo, mimoso e franzino todo fechado num roupão de flanela. Reconheci
aqueles formosos cabelos cetinosos: reconheci aquela carne delicada e virgem;
aquela pequenina mão, e também reconheci a aliança, que eu
mesmo lhe colocara num dos dedos.
Mas oh! Laura, a minha
estremecida Laura, estava tão fria e tão inanimada como os outros!
E
um fluxo de soluços, abafados e sem eco, saiu-me do coração.
Ajoelhei-me
junto à cama e, tal como fizera com as minhas violetas, debrucei-me sobre
aquele pudibundo rosto já sem vida, para respirar-lhe o bálsamo
da alma. Longo tempo meus lábios, que as lágrimas ensopavam, àqueles
frios lábios se colaram, no mais sentido, no mais terno e profundo beijo
que se deu sobre a terra.
- Laura! balbuciei tremente. Ó
minha Laura! Pois será possível que tu, pobre e querida flor, casta
companheira das minhas esperanças! será possível que tu também
me abandonasses... sem uma palavra ao menos... indiferente e alheia como os outros?...
Para onde tão longe e tão precipitadamente te partiste, doce amiga,
que do nosso mísero amor nem a mais ligeira lembrança me deixaste?...
E
cingindo-a nos meus braços, tomei-a contra o peito, a soluçar de
dor e de saudade.
- Não; não! disse-lhe sem
voz. Não me separarei de ti, adorável despojo! Não te deixarei
aqui sozinha, minha Laura! Viva, eras tu que me conduzias às mais altas
regiões do ideal e do amor; viva, eras tu que davas asas ao meu espírito,
energia ao meu coração e garras ao meu talento! Eras tu, luz de
minha alma, que me fazias ambicionar futuro, glória, imortalidade! Morta,
hás de arrastar-me contigo ao insondável pélago do Nada!
Sim! Desceremos ao abismo, os dois, abraçados, eternamente unidos, e lá
ficaremos para sempre, como duas raízes mortas, entretecidas e petrificadas
no fundo da terra!
E, em vão tentando falar assim,
chamei-a de todo contra meu corpo, entre soluços, osculando-lhe os cabelos.
Ó
meu Deus! Estaria sonhando?... Dir-se-ia que a sua cabeça levemente se
movera para melhor repousar sobre meu ombro!... Não seria ilusão
do meu próprio amor despedaçado?...
- Laura!
tentei dizer, mas a voz não me passava da garganta.
E
colei de novo os meus lábios contra os lábios dela.
-
Laura! Laura!
Oh! Agora sentira perfeitamente. Sim! sim!
não me enganava! Ela vivia! Ela vivia ainda, meu Deus!
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