IV.
Estou num tipo de hotel ou shopping. Há muitos consumidores circulando pelos
ambientes. Homens muitos homens, claro, maiores e mais fortes e mais
imponentes.
Sei
que minha irmã está comigo, mas ainda não a vejo. Um homem se aproxima. Percebo
que habito um tipo de cativeiro. Saibo por ele que há homens que pagam-no para
transar com ela. Sugiro-lhe que eu cumpra com a tarefa, a fim de poupá-la.
Aparece-me
um copo duma bebida alcoólica e divido com ela. De qualquer maneira já não era
suficiente para amortecer. Que seja um quase nada para ambas, então.
Não
vejo acontecer. Mas vejo que outros chegam enquanto realizo a tarefa da qual
tentei poupá-la. Como estou ocupada, eles lhe são encaminhados. Eu não pude
poupá-la.
Estou
em um tipo de convenção. Há muitos jovens. E homens. Estou em um grande grupo
reunido em pé. Eles falam alto, são estridentes e articulam mais gestos
inteligíveis que palavras inteligíveis.
Pode
ser que seja uma festa e estão todos bêbados. Peço a um deles um cigarro. Ele é
grande. Ele me o entrega e passa seus tentáculos pelo meu corpo e me puxa para
perto de si. Sinto asco e ódio. Abro a boca e dela sai algo como: "você
vai fazer isso com uma mulher pequena e manca?", ele se choca. Acusa-me. Todos
se viram atentamente.
"Branca?!",
"você diz 'branca'?!". Estou confusa, mas lembro-me de haver dito
algo semelhante ao que ouço. "Sim. Pequena e branca", digo, sem muita
confiança. Olho-me, sou mesmo. Olho novamente para o homem grande. Ele é negro.
Não
entendo porque estou dando seguimento. Não entendo porque defenderia o fato de
ser branca para me livrar de seus tentáculos machos.
Consigo
sair do grupo, coisa que não me alivia a tensão racista. O boato já correu
enquanto acontecia.
Estou
andando e percebo a perna esquerda doer, dificultosa de caminhar. Olho-a e
vejo-a engessada. "Manca!", não 'branca'...
Chego
ao outro lado do salão, envergonhada. Encontro amigos. Eles sabem que não disse
'branca'. Sirvo-me um copo de qualquer coisa alcoólica enquanto observamos a
balbúrdia.
Abro
os olhos. Ouço o som de um jogo de futebol sendo narrado. Olho. A janela logo
abaixo de meus pés, a cômoda, as paredes, de lado, à minha frente. Estou
deitada.
Tiro
o corpo do coma, me espreguiço, estico as pernas, sinto meu tornozelo doer. A
perna esquerda continua engessada.
Levanto-me.
Saio do quarto. Ela não está na casa. Sua cama está revirada como sempre, e não
me indica nada sobre seu paradeiro ou há quanto tempo está fora dela.
Sirvo-me
um café de ontem, colho meu livro esquecido embaixo do sofá e sento-me na
entrada da casa, para fumar o primeiro cigarro do dia.
"
'Com a palavra pensar entendo tudo o que acontece em nós de modo que o percebamos
imediatamente por nós mesmos; e por isso não só entender, querer e imaginar,
mas também sentir é a mesma coisa que pensar. ' (Descartes, R. Princ. Phil.,
I, 9). "
Atenho-me
à reflexão. Ela chega, falando ao meu celular, com "o gatinho".
Digo-lhe sem pensar "bom dia!", com uma entonação indesejada. Ela
entra na casa sem responder.
Percebo-me
menos irritada, até menos desejosa de um "ficar bem" desesperado que
tantas outras vezes senti.
Nossa
viagem acabou. Como há dias já havia considerado e, há dois dias disse a ela
com ênfase, à beira do fogão.
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