III.
Fui convidada por um amigo para um feriado de junho em São Tomé das Letras.
Disse-me que levasse uma amiga. Os meninos são assim, aparentemente; planejam
monogamias para sempre, sonhando com orgias. Penso dentre as amigas e percebo
que não são muitas as que topariam uma viagem de supetão com dois homens que
não conhece, passar dias na casa de um deles com mais não-sei-quantos outros
desconhecidos, amigos do amigo do amigo da amiga que a convida. Na verdade, a
fim de registro, são duas, sendo uma delas a amiga da amiga que ia que, tendo
sabido da peleja, disse que queria ir também.
Lá,
o combinadinho
dois-casaizinhos-para-que-todos-os-meninos-se-satisfaçam-com-o-que-é-para-cada-um
é atingido; ela e o amigo do meu amigo se apaixonam e vivem seu caso. Seu.
Eu
vivo, além do meu, minha. Minha vontade de fazer isso ou aquilo. De beber
aquela cachaça curtida com cogumelos, mais aquele conhaque com mel, fumar
aquele baseado, e aquele outro, e aquela cachaça de novo e fazer malabares com
aqueles facões e socar aquele cara.
Ela
quer aquele que "é meu", pela lógica que não nos empenhamos em
questionar. Eu a incentivo, digo-lhe sobre as coisas que gosto e que penso que
ela gostaria.
Por
algum motivo - entre a falta de oportunidade, coragem de abraçá-la, e o
desgostar de seu casinho -, ela não satisfaz seu desejo.
Somos
duas unidades diferentes.
Há
mais três casais conosco na casa e uma ou duas meninas solteiras que ficaram
pelo tempo suficiente para dizer que nos "roubariam" os meninos,
almoçar conosco, não lavar seu prato e sumir. Até agora me pergunto o que
diabos havia com uma doida de uma "ex-namorada" para querer nos
"roubar" aqueles meninos, naquela situação. Antes roubasse meu
relógio, que era meu mesmo, e que me faria falta não possuí-lo mais.
Seu
casinho me põe a par de suas relações sempre que acha oportuno. Pergunta-me
coisas sobre ela, me pede permissão - baseado em qualquer loucura sua sobre eu
ter alguma influência seja para a coisa em si que supostamente precisa de
permissão, seja para "fazer a sua dando moral pra amiga" -,
compartilha intimidades.
Eu,
que não sou de toda besta, mas sou bem besta, não percebi exatamente o que
significava tudo aquilo, e achei que tinha algum controle, pelo menos sobre
mim, ali. Ledo engano, sempre, achar que detemos algum poder sobre qualquer
coisa que não nossos esfíncteres.
Subimos
na pirâmide badalada da cidade, viro-me de ponta cabeça, olhando para o horizonte invertido e uma leve
curvatura, que é da Terra. Fumamos um baseado e a vida é linda naquele instante
antes de eu viajar demais, e de sentir a cabeça formigar, e o vento gelar, e o
joelho coçar e tudo o mais que não me deixo relaxar o presente.
Ela
tem aquele jeito de fazer um charme manhoso ou uma manha charmosa que convence
quase todo mundo que não convive com ela sete dias por semana, vinte e quatro
horas por dia, a fazer tudo o que ela pedir. Sabendo disso, ou pelo menos da
parte onde ela consegue convencer, ela conseguiu que seu caso nos levasse de
volta a Santos em seu carro.
Ao
nos despedirmos meu amigo me diz, enquanto olha-os cheios de paixão ou
querência, que "isso vai dar amor".
Eu
não considerei essa possibilidade, e acho que ninguém também.
Eu
já acreditava que ela era a melhor e talvez única companheira de viagem para
sempre, e não se fala nem se pensa mais nisso.
Faz
meses, talvez um ano, desde São Tomé, e agora há um tipo de relacionamento
entre eles. E eu. Quando ele vai a Santos, visita a ambas, que estão sempre
juntas ou indo se encontrar. Quando telefona, e estou junto, me pergunta,
confidencia, troca afeto (mais tarde não saberia mais dizer o nome disso que
chamei de afeto).
Confio-lhe
uma agulha de cura riscando meu tórax, no quarto dela, que está ao meu lado,
segurando-me a mão.
Abraçamo-nos.
Sorrimo-nos.
Certa
vez ele me conta que está aborrecido ou decepcionado com o nosso amigo em
comum. Diz-me que a relação deles está acabada, e por consequência de um grande
erro do amigo. Incorrupto que era, estava decidido que era imperdoável o amigo.
À hora, achei que, se me contava, contava também com o que eu havia de achar e
dizer sobre tal coisa. Novamente, ledo engano... Não sei mais sobre sua (não)
relação.
Ela
então me relata como haviam decidido que eles tinham agora um
"relacionamento aberto"; ela, que nunca quis um "relacionamento
fechado" com ele, sugere-lhe que permaneçam se relacionando com quem e da
maneira que quiserem. Ele não concorda até que, ela me diz, ele fica com outra
mulher. Daí eles acertam que podem fazer isso o quanto quiserem, contanto que
ela mantenha segredo sobre isso para ele.
O
dia que ele me riscou o tórax, ele também o faria nela. No entanto, assim que
acabamos, entre risos e satisfação, parou de conversar, desbaratinou, e foi
embora silencioso, fechado, e sem riscá-la.
Isso
se repetiu tantas outras vezes, ela me relatou. Passava o tempo com ela falando
ao celular, dormindo, ou monossilábico. Claro, depois de gozar a vida dentro
dela logo que se encontravam.
Ligava
para ela a toda hora e, sempre que estávamos juntas, passava muito mais tempo
do que gostaria ouvindo-o contar ou esperando-a ouvir dele algum causo
emocionante e mortal pelo qual havia passado.
Essa
combinação homúncula parece amarrá-la numa trama de emoções torpes,
estrangeiras e superficiais, engolindo sua possibilidade de autonomia e unidade
para além desse infame relacionamento. E as coisas boas parecem ser somente o
gozo e a perspectiva de uma sensação boa num futuro que um dia há de vir. Ou
não. Uma música toca ao fundo: "a
regra diz para comer na mesa, mas com certeza é mais gostoso comer na
mão!".
Teve
um final de semana que ele ia para a praia visitá-la e não foi porque o
dinheiro não deu. Teve outro que ele ia, mas o carro quebrou. Tiveram vários
finais de semana que ele ia descer a serra, mas o carro quebrou. Teve outro que
ele enfim foi. Mas chegou tarde e foi embora cedo. Teve tempo de fazer só uma
ou outra coisa com ela, e fez sua preferida e dormiu.
Ah!
Têm também todas aquelas vezes que ele não liga para ela, como o prometido e
usual, e ela fica preocupada com sua segurança (ele liga todos os dias, mais de
uma vez, mas quando viaja ou sai com amigos e amigas, não). Daí quando
finalmente se falam, ele lhe diz como passou por uma intempérie tão terrível
que ela quase perde o gatinho dela e que assim, claro, ela não poderia ficar
brava com alguém que passou por um perigo tão grande, mas está tudo bem agora e
eles podem trocar todo o amor que lhes foi impedido antes.
A
gente se vê praticamente todos os dias. Partilhamos nossas vidas em detalhes e,
logo, sua relação com ele é também minha relação com ela. Eu e ele nos falamos
menos. E eu tenho menos paciência, cada vez menos, com as peripécias que não me
deixam mais achá-lo confiável.
Assim
como ela e eu partilhamos a relação em sua origem e mágica, partilho minha nova
opinião, já não tão positiva. Não sei o quanto ela leva-a em consideração, mas
me deixo crer que nada, dado que somente se cala, e permanece me relatando
esses acontecimentos repetidos.
Acontece
que nós desenhamos uma linha muito tênue entre nossas intimidades, o que me faz
participar, até contra minha vontade, de uma relação na qual não escolheria
estar e, ainda por cima, dela tirando somente estes produtos, agora: a fantasia
misteriosa desagradavelmente envolvente, a frustração da exigência, dos
segredos que "devem" ser mantidos, do gozo perdido.
Essa
porra desse "relacionamento aberto" dos infernos atravessa a minha
relação com ela e com ele, de maneira que eu só posso aceitar minha infeliz
posição.
Antes
nós deixássemos somente aos dois, o que supostamente é dos dois.
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