I.
Encaro uma flor desenhada azul dentro de um ojo de díos. A água escorre do fim
da chuva. A louça na pia se acumula. Sobre o fogão, um doce amargo supostamente
sabor prestígio repousa, intacto. Outrora, teria sido devorado. Hoje, o que
devora é azia. E apatia.
Ela
padece em frente à janela, imóvel a não ser por seus pensamentos. Pelo menos eu
acho. Pode ser que apenas casulo vazio, tendo deixado seu ser perambular por
outros lugares mais hóspitos.
Sentei-me
e debrucei-me sobre contos. Contei três. Cansei.
O
que acontece é a síntese de uma longa conta se resolvendo sobre nós. Entre
matemática, história e física quântica. Um resultado infindo de inúmeras
circunstâncias e unidades e variáveis verdadeiramente incalculáveis. Estamos
uma superfície assaz profunda, de maneira que sobre nós se dispõem ambos contos
e contas.
Ensaio
dizer-lhe quaisquer palavras, mas um bolo irritadiço e cansado entalado, mais a
dor que se divide entre o pé e o orgulho (ou seria auto-amor?) calam-me. Ela
sai.
Nas
profundezas de meu assento no sofá uma silenciosa guerra: a incerteza é rainha
déspota que governa sobre todos os súditos, que assim só o são por falta de
opção. Como todo bom governo, o da incerteza serve muito bem a uns e outros,
enquanto que consome a miséria qual impôs a vários outros.
É
um governo novo, de modo que os seres a que submete ambiguamente sucumbem ao
seu paládio, naturalmente, desconfiando-se e acomodando-se nela, ou seja, na
incerteza. Nos templos sagrados, um palanfrório entre sábios, profetas e
charlatães ecoa sobre os ares e os ouvidos dos cidadãos das profundezas. Na
batalha sofista contra a verdade, são imersos os que não conhecem outra coisa
senão eles mesmos. A verdade se mantém incólume, distante, talvez adormecida.
Assim, apartada desse lugar, mantém-se segura de agonias como sua distorção ou
aparo, mas o estado comatoso ao qual aparenta estar serve aos que, falaciosos,
dizem detê-la. Nesta guerra fria que é o governo em mim, assisto, de longe
privilegiada, mais inerte e passiva. Mais do que me apraz.
Levanto-me
de súbito e me ponho às tarefas da casa. Ela também é viva e há de ser cuidada.
Dado que já não soube cuidar de laços, atenho-me ao trabalho com mais zelo do
que o costumeiro. Atentamos que eu, assim como tantos outros nos infernos, não
busco ser causa de males. Acontece que eles acontecem. Eu aconteço.
Enquanto
preparo o almoço para três, observo o pé de limão nos fundos da cozinha.
Lembro-me de ter ouvido no rádio da oficina do outro lado da rua que, ao
contrário do que se pensava elas, as árvores, ficam mais fortes e mais sedentas
ao passo do tempo. Seu envelhecimento lhes dá não o cansaço ou fraqueza, mas
força física e, quem sabe, energética, pela vida. Conforme vão adentrando,
ocupando, ou mundo, elas vão dele tomando mais e mais posse. Pertencem e tomam
pertencente o presente no qual habitam, alimentadas de história, certificando
futuro. É isso tudo o que observo naquela janela, durante o preparo mecânico do
arroz-com-lentilha-cenoura-vagem-salada-e-batata-muita-batata.
Batata
é vida. Frita, assada, cozida. É aquele tipo de alimento para a alma. E aquilo
que penso alma em mim é fraco e, aparentemente, fica, ao contrário das árvores,
cada dia mais cansado e fraco.
Asso
batatas para alimentar a alma.
Ela
já saiu faz tempo, e ocupo minha mente para não elaborar planos de reconquista
de seu bem estar e querer. Já é tarde e aquela terrível musica de Jorge Ben soa
na minha cabeça; "a minha teimosia é uma arma pra te conquistar. Eu vou
vencer pelo cansaço até você gostar de mim, mulher...". Rio-me e,
chacoalhando-a para fora, vem-me outra, "ela já não gosta mais de mim. Mas
eu gosto dela mesmo assim. Que pena! Que pena!". Acho que carma e
consciência são crianças, talvez até irmãs gêmeas, das mais arteiras.
Entre
tragos à porta dos fundos pergunto à residente que frita um filé de frango cujo
aroma destacadamente adocicado somente
agora reparo:
"Você
tem planos para sua vida, ou vai vivendo conforme as coisas se apresentam a
você?". Essa é uma grande questão, especialmente para se perguntar assim,
dessa maneira, como quem pergunta se tem coca lá na geladeira.
"Acho
que assim, vou conforme as coisas vão aparecendo", ela responde, simples e
um tanto reflexiva.
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